quarta-feira, 24 de julho de 2013

O canto de Mariano

Estávamos conversando, esses dias, sobre a dependência da criação poética às experiências pessoais. Decidimos então fazer um desafio: Helena, mulher branca e feminista, teria que escrever um poema sobre a causa negra, e Ronaldo, homem negro e anti-racista, faria o mesmo, mas sobre a opressão por gênero. As trocas de experiência sobre as opressões que sofremos foram cruciais para que pudéssemos entender mais e apoiar às causas um do outro e vice-versa. Seguem abaixo os resultados deste desafio conjunto.



Bastaria uma noite preta
um chão preto
botas pretas
e olhos fechados,
pensavam os brancos,
para armar na festa negra
uma farra comedida e calada
sem incomodar aos caprichos
e às canecas de leite
de seus vizinhos brancos:

os que dizem fazer a ciência
em torno de si,
e fizeram da poesia
um troço branco e inexato,
poema raro,
armaram mil mecanismos
para arrancar do preto
o que é dele
roubar-lhe a música
os versos e medicamentos
roubar as salas de aula
os adereços de cabelo
os pequenos endereços
e até o barulho das festas.

Uma festa muda e camuflada,
eles pensavam,
para que ninguém desperte:
nem brancos, em sono de edifícios
nem pretos, a despertar todos juntos
sobre si mesmos.
Mal sabiam eles que a negada
já acordou unida há tempos.

Não é preciso que caia a tarde
e chegue a noite
para Mariano começar a cantar.
Mas nesta noite ele canta.
A voz sai seca, coaxando,
e ecoa entre o cimento,
pelas frestas das lajotas,
rente a cada azulejo
e passa
da festa
ao mundo
e o mundo não passa da festa dos negros
e mais um pouco,
o pouco dos brancos.

Quando Mariano abre a boca
até o fundo do seu próprio céu,
um fim de mundo na garganta,
canta
as dores de ser camuflado
ser escondido à revelia
Mariano, o sapato furado
mas por pouco tempo,
que fique bem claro.

Cantar o pão velho
não o torna macio
não coloca recheio
presunto nem queijo
mas faz o pão
ainda mais pão,
completamente pão,
duro e coberto de dias,
porém pão.

Canta-se a dor
pois a dor é ainda mais dor
para doer nos tímpanos
de quem a causa
e fortalecer cada um dos doloridos.
E vejam que a dor é muita
para a pouca porção de pão
mas a festa irá mudar,
vão haver reviravoltas,
é o que canta Mariano
e que Dona Marta chora
suspira, esfrega os olhos
calada e de ouvidos atentos,
o grande corpo de matrona,
de corajoso ventre,
posicionada em meio à roda confusa
mas plena de si.

As estrelas medrosas aparecem,
aos poucos, como gatos desconfiados,
só para ouvir Mariano cantar
e ver a festa preta dançar
nítida,
tremendo o chão da madrugada.

Ninguém dormiu naquela noite
e ninguém mais dormirá
até Mariano decidir
se a grande festa já ganhou
tudo aquilo que queria
e que lhe foi negado
durante toda a vida.

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O outro poema está neste link:
http://assimbemdepressa.blogspot.com.br/2013/07/encaminhamento-de-ana.html

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