domingo, 3 de julho de 2011

Todo o mal do mundo no prego da propriedade

Era menina ainda, dessas pequenas pequeninas. Nem ousava pensar em ser moça ou gente do gênero. Andava no canto da calçada, a mão atada à da mãe, que tinha medo dos perigos da metrópole. Foram até a locadora buscar algum desenho animado para animar o cobertor do sofá e o chocolate morno, numa temperatura que não queimasse sua língua infantil. Na volta, um caminho de edifícios baixos lembravam os anos cinquenta, os tais dos tempos dourados. As casas antigas eram simpáticas, combinavam com a singeleza do bairrinho, gentileza entre os escombros do real e grande bairro. Passaram frente a uma casa que se escondia atrás de um muro alto, escuro, de grades gordas impedindo qualquer mexerico. Fora há alguns anos a casa de um velho oficial da polícia militar, que na certa tinha medo do retorno daqueles que ferira sem motivo. Os tantos manifestantes de setenta e pouco, que morriam depois dos desaparecimentos, podiam muito bem, plasmáticos feito chama de fogo, pular o portão a qualquer momento atrás de justiça, era o que pensava sua cabeça amedrontada pela culpa de seus crimes legalizados. O policial já havia se mudado há alguns anos, mas o muro prosseguia no mesmo padrão. Dele saía um prego torto, sem ponta, prova da violência que aquela casa abrigara. A menina passou e o prego num baque puxou sua blusa de lã vermelha. Ela tentou prosseguir e por um minúsculo segundo, despreparada, deixou-se ter o corpo empurrado para trás. O pescoço criou marquinha da gola fechada, que em poucos minutos se fizera esquecido. A blusa, tricotada pela avó no inverno passado, tinha então uma das mangas esgarçadas, o enlace do tricô arrombado pelo prego. Bem menina, menina mesmo, ela tirou suas primeiras conclusões sobre os muros e a propriedade. Conclusões nada boas, diga-se de passagem. Chegou em casa desanimada, tentando de todo jeito juntar os fios de sua blusa.

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