quinta-feira, 23 de junho de 2011

Metalinguarte

Outrora já fora primeira linha, modelo de exemplo. Daqui em diante, como o tem sido ultimamente, há de viver rangendo. Até que pare, e então não tem volta. Era lento o elevador, de fundos botões cujos andares apagados só a ascensorista conhecia. Tinha já rosto enrugado e cabelo rarefeito, mas seu gosto por puxar conversa mocejava toda ela. “Oitavo andar, né? Como tem ido? Sabe que nesse frio eu sofro, né. Ai, minha rinite, minha sinusite, quase arrancam meu nariz pra fora!” No que Heitor respondia monossílaba e sorria largo, ponta a ponta, observando o pisca-pisca dos andares sobre a porta. Marcava presença no velho edifício pelo menos uma vez na semana, que lá se concentravam seus afazeres. A ascensorista prosseguia o papo enquanto atentava nas noticias levianas de seu radinho de pilha, que por uma corda fraca ficava pendurado em um dos botões inúteis do painel. A porta abria, feito som grave de piano, e Heitor saía acostumado, sem tropeçar no desnível entre pisos. A grande porta, trancada, demonstrava o atraso do maestro Aurélio, que sempre brincava ter pulso muito fino e perder por isso a hora. “O relógio cai no chão e, depois, nunca mais, não é?” era seu cumprimento quando deixava o garoto esperando. O corredor desembocava em uma pequena sala, que por sua vez se bifurcava em duas escadas, para cima e para baixo. Na última parede, uma janela solitária marcava presença. Heitor se debruçava em seu parapeito todo dia que o maestro atrasava, mas não gastava muito tempo, não. A vista era chata, só levava a velhas passeando com cachorrinhos de raça ou a uma e outra persiana de escritório. 

No frio, que é tudo mais quieto, um pombo gritou lá do alto do céu. Só como gritou, foi-se só, talvez até um pouco cabisbaixo, vagueando nortes-suis. Heitor levantou a cabeça que, gélida, rangeu como o idoso elevador. A pomba já havia ido embora, e talvez já houvesse pousado em um poste qualquer ou até soltado suas alvas merdas em cocorutos quaisquer. “De quê...” importa, ele completaria a própria frase, caso esquecesse que sua voz fazia som e ecoaria por todo o corredor. Heitor subiu os óculos e o céu estava branco, num chove não molha com um quê de garoa ou toró, um dos dois havia de ser. No prédio da frente, porém, dois andares acima, uma pequena janela aberta esvoaçava as cortinas cor de vinho. Eram finas e translúcidas, essenciais. Entoavam mudas, ao som do vento, a dança do ventre de seu tecido algodoado. 

Heitor forçava os olhos e as cortinas lembravam seus tempos de menininho, quando nas férias ia à praia com a tia e com ela fazia as pipas mais bonitas, do melhor papel de seda. Por detrás dos lenços, a janela exibia o interior da sala, que parecia aconchegante, apesar das paredes brancas de reboco. No canto, de boca calada, uma mulher olhava nada. Cor dos olhos não se sabia, nem qual forma tinha a boca. Se tinha seios fartos ou cabelo cacheado, não, as cortinas não permitiam tanto. Só se sabe que examinava as paredes, meticulosamente, intacta e imóvel como se pombos não gritassem. Como se elevadores não rangessem e relógios não delimitassem o tempo. A janela de Heitor, no fim do corredor, era nua de tecidos, e nem assim ninguém olhava. De quê importa? Se o coitado, sem mais falas, só sabia olhar pra lá. O rapazote, de penugem despontando sobre os beiços, parecia guache seca, com suas rudes feições. 

Seus óculos, escorregando pelo nariz oblíquo, precisavam maior grau. Rapaz, crescido, poucas falas. Arrancou, brusco, a mochila das costas e do bolso da frente pegou com dedos delicados uma pequena câmera de filme, da época de sua tia. Das trinta e seis poses, esta fora a sétima. A revelação demoraria em proporção aos atrasos do maestro. Em agonia, ouviu o abrir rangedouro do elevador, de onde saltou o Maestro Aurélio, com a mesma graça de sempre. Heitor riu seco e virou-se rápido, de uma vez só e sem titubear, que não gostava de despedidas, mesmo que irrecíprocas. A semana passou rápido, em fotografias aleatórias pelas calçadas rotineiras, num desespero desejoso. Na vez seguinte, de novos óculos e mesmo intento, saiu do elevador aos tropeços e encontrou o Maestro Aurélio bem à porta, procurando as chaves na enorme mala de couro. A chave tilintava lá dentro e ele, meio cegueta e com calos na mão, custou a encontrá-la. Heitor esticava a cabeça para frente, inquieto para começar logo aquilo e sair para a janela. A revelação se completaria no fim da tarde, na hora em que as ruas lotam. Quando saiu pela grande porta, a voz enroucando os desafinos de minutos passados, debruçou-se à janela do corredor, que era feia e sem cortinas, sem mistérios para sonhos se remoerem. Os pombos passavam e gritavam, coisa normal da gigantesca metrópole. Mas, dois andares acima no prédio da frente, a cortina estava em total reclusão. Os ventos não sopravam, não abusavam da boa vontade da mulher que ao nada olhava. Talvez ela, só com a gelidez seca da vista, os tivesse mandado tomar rumo e parar de curiosidades nela. Ou quem sabe, quem sabe?, podia ter acordado doente, gripada, com tosse, enxaqueca ou dor de garganta. Podia ter saído com o marido ou com o amante, podia ter ido ao mercado comprar a janta, vai saber. 

Não ventava, mas Heitor fechou o vidro da janela e foi-se embora de cabeça baixa, prestando atenção aos leves movimentos do corpo e ao apertar do botão do elevador. A ascensorista chegou rápida, como se estivesse de tocaia, e comentava a gravidez de alguma atriz das novelas noturnas. O rapaz riu, sem-graça e, ao se despedir, percebeu que não fazia ideia do nome da ascensorista. Foi-se rápido antes de perguntar, e a ele só restou maquinar qual podia ser, enquanto esperava o ônibus na esquina. Em casa, abriu o envelope com cuidado, como se desdobrasse um origami para depois seguir os moldes e montar mais uma vez. A mulher fora encantadora por não pedir nada a ninguém, implorando canto ao mesmo tempo. A fotografia ficou bela, com a luz no ponto certo e o foco mais perfeito. A cortina imobilizara-se no flagra, desnudando por completo a janela da tal mulher. A fotografia ficou bela e a mulher, que era tão calma, fora fruto das mãos ágeis de algum pintor qualquer, de assinatura desconhecida. Heitor emoldurou a mulher, metamórfica e metonímica, bem ao centro de sua parede branca. O elevador, dias depois, ruíra. Era preciso subir pelas escadas, o que atrasava mais ainda o Maestro Aurélio das pernas fracas. Heitor ia à janela, levantava os óculos, mirava as pombas evitava meter olhos no quadro da mulher que via tudo. Via tanto que fingia zombar do coitado, só pra judiar, só pra fazer arte.

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