segunda-feira, 6 de junho de 2011

Caixas



"É o mistério profundo, é o queira ou não queira" (Tom Jobim)


Gosto muito de caixas. Grandes e pequenas, de sapatos ou brinquedos velhos, de surpresas ou descobertas. Caixa que fecha sempre há de abrir, e por isso gosto também das tampas das caixas. A verdade é que gosto muito de tralhas, sempre me deixam com uma impressão de que elas um dia, vai saber? venham a prestar para alguma coisa. Não que eu tenha muito tempo de sobra, mas quando essa folga aparece costumo me dedicar a decorar as tampas de minhas caixas, talvez para lembrar de abrir depois. No verão tinhoso das férias, lá estava eu arrumando as bagunças de casa. Sóis abertos e janelas em nulidez, era um tanto gigantesco de caixasque, carambolas! o tempo nem cabia em caminhadas matutinas. 

Nas caixas menores, os velhos amigos playmobils e dedoches, nadando em um mar empoeirado de clipes e rebarbas de papel. Nas caixas maiores, cadernos e provas dos tempos de ginásio, cujas respostas absurdas faziam valer o dia de cansaços. "O texto é muito legal e interessante", dizia eu-toda-boba sobre uma croniquinha juvenil. E, enfim, a caixa mais esperada e embolorada, porém a mais vitroleira de todas. Abri com cuidado, lembrando dos causos que vovó contava nas tardes de tempinhos atrás, tudo sobre as desventuras daquela família distante (o Nordeste não é tão perto assim daqui!) que, vejam só!, também me é. Foi nesta caixa que descobri minha amizade, uma espécie de hereditariedade. Enriqueta, que fazias tu ao lado de mamãe naquele outono tropical de 86? Enriqueta é amiga antiga, não só sábia mas também sabida e sabichona. Entende o ser humano melhor que qualquer um, porque sabe ler os olhos de toda gente, claridade foco abrigo. Mamãe pode até ter crescido, mas encontrei Enriqueta num desses cantos da cidade, uma graça feito sempre, e com ela passo bem. Acontece que Enriqueta é a cinquentona mais jovem que eu conheço, encoraja o mais deprimido dos homens a levantar e andar além-bairro. Ela canta baixinho para mim, toda sinestésica que só. Faz-me bem a Enriqueta, faz surpresas que transformam negativos em bondades que foram e ninguém nem lembra data porque se espicha além das ampulhetas, todo matte. 

Dia desses fomos juntas viajar, que o interior paulista é sempre uma delícia. Café, queijo e pão caseiro, bolo de frutas, o galo que ressoa o início da manhã feito reinado solar. Aquilo tudo que não precisa adjetivo. Eram bonitos os dias no sítio, acabavam com gostinho matutino, talvez também de matutâncias. Começava farto de amarelos, seguido de uma baita preguiça e alguns parágrafos de fibra de papel. Depois, hora de botar os pés pra funcionar. Que coisa bonita, sô! É boi (ê, boi!), é cão e canção. É grama de forças, é borboleta de asa capenga e é uma botina no meio do caminho que, ora essa!, antes fosse, pelo menos, bonita. Enriqueta aguentava as incertezas do morro e dizia sem reclames tudo que tinha pra contar, feito causos de vovó, feito caixas da infância. Que dentro da gente sempre tem uma parte meio caixa; só precisa ter jeitinho de abrir e fazer toda tralha ter sentido. Que vezenquando as tralhas se encaixam e isso eu não sei se pode chamar de amor, mas a esperança dos olhos de Enriqueta dizem que sim. E veja lá, não estou falando de amor besta, longe disso. Esse amor é amor todo, é dar gosto no outro em ser mais um outro. Que ser sempre mesmo tem vez que chateia. 

Enriqueta, eu só tenho a agradecer, muitobrigadaliás. Talvez a graça das pseudonaturezas seja pescar o que é pseudo, pseudônimos do homem. Uma botina, um ancinho, um tijolo e os ventos com uma voz de Elis Regina. Enriqueta, querida Pentax Spotmatic de meus piscares, tem conseguido abrir caixas entrincadas do meu quarto e da varanda que se abre dele feito apêndice e idolatra as luzes da manhã. A nossa antologia analógica cresce aos poucos, de trinta e seis em trinta e seis. Que toda caixa aberta guarda resquícios para tocar a campainha e trocar palavras com gosto de sítio. O que já é belo não é muito de meu gosto. Já está pronto e qualquer respiro deixa mais feio. Gosto mesmo é daquela ranhura ou pedaço de tralha, daquilo que pode ser, daquele belo que não se faz sozinho, mas que se revela só depois, em construção.

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