quinta-feira, 21 de abril de 2011

O fim da ladeira

Da geométrica Avenida dos Impacientes, saltavam ramificadas todas as ladeiras da cidade filhote. Belo era, da sacada, assistir o nascer diário do astro como em poltrona nivelada de cinema, até a vista se averiguar somente no prédio mais próximo da avenida e, portanto, tocante de céu. Os ares eram quentes, tropicalíssimos dessa terra de palmeira e sabiá. Moleque que é moleque se estrepa quanto for, mas não deixa de mostrar joelhos no vestir-se, questã de honra e clima. Em contraponto, ontem nasceu branco -branquíssimo o dia - diazíssimo, mais ou menos dízimo. A névoa cobria vista e telha, pastoreando em multidão. O moleque girou a chave e guardou no bolso, que sábado é dia de saco cheio de pão, cheiroso, pra mãe pai irmão vira-lata que ganha o miolo sem gosto. Morava no fim da ladeira, como se fosse fim de poço sem parede - lá, em tempos de maracujá, tem os ventos mais ventantes, quase rodagigante. A névoa grossa impedia a descida do cheiro de forno que costumava guiar o menino. 

Foi sem medo (era moleque!), a careca leitosa procurando bússola e placa de rua. A contragosto da Senhora Sua Mãe, partiu em blusão de dormir, todo branco mas com uma ou outra mancha de baba seca. Era cem por cento algodão e outrora fazia parte do uniforme escolar do irmão mais velho, agora já letrado. O irmão era bem touro, andava em quase marcha e tinha a coluna nos trinques. De uniforme, então, era o orgulho da mãe, que não tivera tal sorte para gabar-se. Irmão cresce ali, cresce mais um pouco, termina ginásio, todo um baú de vestuário se abre pro moleque, que saíra à feia névoa metropolitana arrastando as pontas da blusa pelo concreto arranhado. As canelas raquíticas tropeçavam no algodão, enquanto o enrosco do tecido chegava nos dedos do pé, que empunhavam o encardido dos chinelos. Gostava de bola e de bafo, de gude e garoa, mas ainda fazia cara feia pr'as meninas da mesma idade. Bastava uma delas passar, com abraços à boneca, e o moleque era língua pra fora, careta completa.

Pisava passo bruto meio inóspito, olhando enfezado à meteorologia que, metida, acha que é quem para impedir o futebol dos sábados de sol? Adentrou-se no monstro névoa como se pão fosse pérola. A blusa, pesada, se encharcava por mágica, que neblina não tem nada que virar chuva, ora essa! A padoca do Seu Benedito era três quarteirões subindo ladeira, sabe-se lá porém qual das três paralelas levava caminho correto. Não barulhos de porteiro, não sabiá em portinhola, não brinquedo não papagaio não rabiola. A névoa é sussurro de talvez, é não sei, possa ser. Névoa é poça com viés de olhar, um tico mais séria que a dos fins de garoa, que meninada pisa sem  dó nem piedade. Dava um pouco de cegueira externa, num lembrete de papel manteiga, mas - ai caramba, nunca vi na minha vida uma neblina trancar em casa todos moleques da rua. O pequeno matutava e matutava, no caminho do pão fresco. Já ia tocar a campainha do menino mano seu, quando botou reparo na farelice de neblina que umidecera a ponta de seu nariz. Rubra, cor de macarrão de domingo, se estendia feito raiz de árvore pelos ares desertos da ladeira. Névoa do vermelho mais concrético, cor de sangue e, assim sendo, cor de peito de moleque. Ele baixou os olhos e nem nada disse. A névoa tapava fala e audição. O cheiro do pão se aproximava leviano, rumando o pequeno travesso, enquanto família abria a porta aos moleques da rua para chorar apertados o caixão branco, todo branco, na glória de mais um moleque que nada tinha a ver com as histórias enroscadas do fim da ladeira.

2 comentários:

  1. Helena, se você se preocupasse menos em ficar floreando com o texto e fosse mais objetiva conseguiria ser uma escritora melhor. Da uma lida no grande Bukowski, na galera da geração beat... Raymond Chandler era péssimo em escrever e um ótimo escritor, pense nisso.

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