quinta-feira, 31 de março de 2011

O álbum de recordações de Raquel Pimenta

- Olha só essa! Você saiu linda!

Um risinho e mais outro, para em seguida a boca de uma dar lugar às memoráveis histórias e lendas que encaminharam a existência de tais recordações. Os olhos da outra pareciam amor de peixe, quase não piscavam e, justamente por isso, os olhos marejavam poucos mililitros, que pareciam mais bonitos depois que ela, falsa sem perceber, dizia ser por causa das palavras bonitas e que ela era mesmo uma manteiga derretida de carteirinha. Todo fim de ano repetiam os mesmo jargões. Arrumação da casa, pernil, rabanada. Como se fosse a única época possível para mergulhar nas velharias autobiográficas.

- Você pequena era idêntica ao Bernardo, ó... impossível negar que ele seja seu filho.

Bárbara voltou-se rápida para adivinhar-se em mais algum dos seu bolores que Raquel adorava fuçar e esfregar em sua cara. O banco de madeira envernizado que alojava as magrelas ancas de Bárbara rugiu de antiguice, logo logo cairia algum dos pés. Moravam numa casa térrea cuja porta confrontava-se já direto com a rua, mas nem por isso era de ferro ou resguardava-se com mil cadeados. A frente da casa inteira se escondia atrás de uma hera cinquentona com força digna de mitologias. Dentro, havia a seção de coisas velhas e a seção das coisas novas, sem firmar um tom. Se a casa fosse inteira em brancopreto, combinaria consigo mesma mas, lotada de cores múltiplas em estilo retrô, de antiquário ou modernices, só conseguia combinar mesmo com apêndices das duas mulheres. Ao abrir a porta para entrar, quem esbragoa um "seja bem-vindo!" é uma cadeira de balanço feita em tranças de palha aos traços do Bixiga, mas que Bárbara herdara como lembrancinha da avó, que falecera em 98 feito borboleta voltando ao casulo.

A velha fazia uma torta de palmito com azeitonas, como fazia sempre para seu jantarzinho solitário -- sem grandes dramas, sem dores de sozinhice, acostumada já às noites de novela das seis, das sete, das nove e o jornal no meio delas, Bonner já grisalho desejando um boa-noite com alma de geladeira. Às seis e meia, durante o intervalo na tevê, período de propaganda de carros planos de saúde brinquedos e bananas, a velha destrincou-se de sua cadeira de balanço para levar a torta ao forno. Era uma torta grande e suculenta, os palmitos escorrendo pelas bordas da firme massa de maizena e manteiga. Em compensação, a velha já tinha olhar meio fraco e ossos meio cegos. Levantou-se em rangidos como se fosse ela própria a estimada cadeira e, chegando na escura cozinha, ligou o gás mas não o forno. Foi morrendo a vastos poucos, sem nem botar reparo no arfar exacerbado que já dominava todo seu otorrinossistema. A torta, intacta e crua, manteve-se muda dentro do quarto sem fogo sem luzes. Assistiu todas as aflições posteriores e póstumas pela janelinha do forno, parecia até estar assistindo novelas de tão interessada que pregava os olhos de palmito na cozinha lá fora.

Nessa época, Bárbara e Raquel ainda só tinham relações de banco de bar. Os bancos compridos faziam-nas balançarem as jovens pernas no ar e, entre uma conversa e outra, assim tão sem querer mas na verdade sem problema algum convenhamos aiaiai, as pernas se cruzavam e relavam uma na outra, as batatas molengas se abraçando no ir e vir envergonhado das pequenas paixões. Alguém desconhecido tocara o celular tijolar de Bárbara, espalhafatando toda a luminosidade urbana da metrópole noturna, taciturna. Foram as duas às pressas feito girassol até a casa da velha, buscar papeladas e outras burocracias para então cuidar de velório, enterro e xis problemas. A casa, toda cor-de-rosa, pendurava minúsculos vasos de bromeliazinhas florindo escarlate, e Raquel sorria para todas as coisas, sem mutar porém o resto da face, num quê talvez doce talvez com ares demoníacos. Atravessaram a sala principal e viraram à esquerda, os pés em marcha fazendo rugir a escada de verniz descascado.

À direita, porém, a luz da cozinha ainda estava acesa. Raquel andava em passos de pantera, despistando os próprios pés. Os peritos já haviam desligado a geladeira, abarrotada de bolores fétidos. Ela, toda graciosa para si mesma, agachou-se frente ao fogão cor de grafite e nesse movimento parou, analisando com linces olhos os caldos de feijão seculares ou as porções de molho de tomate encrustados na superfície lisa do aparelho. A torta, ainda em resistências, podia ver de seus ângulos vantajosos a calcinha larga de Raquel, por entre os babados esvoaçantes da saia, que pareciam lençol em varal de colinas. Calcinha é coisa que cresce com a gente, mas se perde porque alarga demais da conta e, translúcida porém existente, ultrapassa nosso tempo e cintura. Raquel piscava sem bater os cílios, só encenando aos sujeitos ocultos. Um fiapo de couve, um naco de alho, respingos de mostarda e um cubinho de palmito, a moça tinha em vistas todo o cardápio da avó de Bárbara, e percebeu que, meus deuses!, haviam muitos restos de palmito cegados pelo fogão. Curiosa que só ela, puxou aos poucos a portinhola do forno, e era rangido tanto que suas coxas até se arrepiaram. Lá dentro imperava a noveleira torta, imbatível e esbanjando as gorduras fartas de sua existência. Quase tilintava brilhantes enquanto os olhos opacos de Raquel puxavam com cuidado a torta para perto de si, a fôrma por entre os ósseos dedos. Se fosse alguns meses depois, Raquel já ostentaria o fiapo prateado de anel que Bárbara a presenteou de carinhos, e esse mesmo anel arranharia o metal impecável da fôrma, talvez ecoando o mais decibéico ruído de arranhões.

Mas quem cantou foi o silêncio. Cantou em nota única, universal, ressoando por toda a casa aviuvada. Nas escadas, os passos preocupados de Bárbara e os advogados desciam em estardalhaço, enquanto a voz grossa de bárbara chamava em doçuras por Raquel, a Raquel sumida, Raquel esquecida, Raquel que pára para olhar. E Raquel parecia ostentar algodão nos ouvidos, enquanto levava o dedo de unhas impecáveis à saliência de um palmito branco como a lua em noite de contraste.Bárbara chegou desconfiada na cozinha, num dois pra cá dois pra lá sobre o muro, e só via a companheira de costas, sentada no chão de pedra, enquanto uma torta a comtemplava. Chamou chamou chamou e Raquel veio, o canto da boca feito o fogão da velha, lambuzado com um resto minúsculo de creme de palmito. "Aconteceu alguma coisa?", perguntou ela como se tivesse acabado de chegar. "Não, só estávamos organizando as coisas de vovó e decidindo sobre o velório... você vai comigo?", "É claro que vou, você achou que eu ia te largar agora, com todas essas coisas pra cuidar?", "Não sei, você está um pouco... estranha. E o que é aquilo no forno?", "Não sei direito, parece uma torta salgada. Alguma coisa da vovó.", "Da minha vó, né.", "Quer ver? Parece gostosa e eu acho melhor tirar daí.", "Depois os peritos tiram, Raquel. Não quero mexer nessas coisas agora, vamos embora, por favor? Tudo tá meio estranho, hoje.". Foram as duas quase tocando as mãos, Raquel com o interior da torta roçando esôfago enquanto Bárbara pensava nos documentos do cartório e, sem querer e sem saber como, sentindo um cheiro nostálgico de domingo no ar da pequena viela onde morava a avó. Dos tempos em que comer torta caseira era fartura de almoço em família, e não cacoete de idosos sozinhos. Não sabia direito se a loucura principal de seu ser era pensar na maldita torta da vó ou se era desconfiar do jeito paletó de Raquel.

 Agora, em casa, o cheiro de torta já sumiu assim como Bárbara já não chora mais pela antiga avó. Parece até que, nas arrumações de tempo e casa, Raquel dos eternos tempos atuais conseguiu transformar a velha em vó mais sua que dela, assim imaginava. Vez ou outra, tentava fazer alguma delícia com recheio de palmito, mas nunca acertava no ponto, estragando tanto o ponteiro de tempo atrás quanto do segundo-agora. O cheiro de mofo das arrumações da casa também pareciam despertar um certo outono em pleno verão metropolitano.

- Ei, o que você está fazendo?
- É só uma foto minha, vou guardar na minha gaveta.
- Deixa eu ver? Acho que nunca vi nenhuma foto antiga sua!
- Ah, não. Já guardei, já.
- Por favor, Raquel, deixa eu ver! E o que uma foto sua estava fazendo na minha caixa de fotografias?
- Não sei também, mas depois te mostro, agora estou arrumando as coisas.

As vozes se calaram enquanto caixas se arrumavam e vassouras valsavam. Era tralha demais, meu deus! E o dia seguinte nasceu fraco, chovendo as dores periféricas da cidade. A janela quase se entupia de nuvens e Bárbara, que acordara cedo, tentava o hábito de Raquel ao novelar as janelas dos prédios vizinhos. Mas era cedo, cedo como filhote dormindo, toda janela estava fechada e nem uma fofoca de luz acesa aparecia. Abriu a gaveta do criado-mudo de Raquel, no lado direito da cama. Sob os papéis de trabalho e cinco fotos três por quatro de Bárbara em anos diferentes, a fotografia oito por treze em papel matte sem bordas era o stop  de uma mesa de domingo, Bárbara vovó mamãe e uma fatia já mordida de torta de palmito. As pupilas umedeciam já o rosto amassado de lençóis quando decidiu fechar a gaveta e guardar a fotografia no próprio criado-mudo, do lado esquerdo. O rangido idoso ecoou pelo apartamento e Raquel, de súbito, abriu os olhos possessos, percorrendo panôramica todo o quarto até travar os olhos nas mãos trêmulas de Bárbara. A torta fotográfica, resistente ao tempo e aos ímpetos invejosos, observava toda a cena como se o mundo não passasse de uma novela.

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