quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Escala

Eu poderia dizer que meu sono é leve ou pesado, que é formiga ou elefante. Mas acho que, analisando bem, o sono é a parte mais insegura de mim. Se desmaio em meu próprio colchão, então podem cair o mundo e todo o sistema solar, não abrirei os olhos tão fácil. Em compensação, cochilar em transporte público, por exemplo, é mais angustiantes que passar noites a fio em olhos escancarados de veias vermelhas. Pois não só sinto uma pontinha de medo de talvez, por uma infelicidade do destino, perder meu ponto e só acordar em Diadema quando na verdade deveria estar em Santana.Acho que meus poros e digitais se atexturam mais ainda, pois só uma força de atrito enorme (envolvendo o vidro do ônibus e meu cocoruto molengo de sono) para me acordar com tanta frequência.

Houve também uma vez, há uns dois meses atrás, que a literatura me absorveu mais que o normal, digamos assim. São raras as vezes em que consigo lugar para sentar no metrô, não sou sozinha no mundo e meus horários coincidem com os de milhares de estudantes e trabalhadores. Na Sé são abertas duas portas, uma para evacuar e outra para reespremer todo um bolo de narizes mãos e pelos de novo. Quando meus pés começam a pedir folga, não há delícia maior: abre-se a primeira porta e metade do vagão de adeserta, circulando consigo não só os pés que precisam bater cartão na hora certa, como também o malcheiro de suor, respiração e existência tribal, por instantes não em sociedade. Eis que então as cadeiras, cujo plástico azul se mantém quente por outras bundas, se encontram vazias e muitas. É preciso correr para sentar em alguma, antes que a segunda porta se abra e uma nova procissão trabalhadora se avolume na péssima estrutura proporcionada pelo governo tucano.

Porém, naquele dia havia lugar em sobra a me chamar logo que adentrei-me no trem. Cansada e sem ninguém necessitando do meu assento, abri A Morte de Ivan Ilitch e afinal a tal morte cheia de detalhes se fazia muito mais interessante que a aula de matemática. Só me arreparei do mundo real quando, em três estações depois da que eu desceria, terminei um dos densos capítulos. A aula já havia começado e eu até hoje não tenho muitas certezas sobre o que diabos é um senóide.

Em escala maior (e internacional, aliás!), vi afobada uma uruguaia cujo nome é Violeta mas que, etimologicamente desonrando-se, tinha o rosto em escarlate numa mescla unicolor entre nervosismo e vergonha própria. Estávamos eu e família desembarcando em Buenos Aires, os olhos piscando caminito, tango, Maradona, alfajor e mucho más. Violeta poderia estar num canto resolvendo os próprios probleminhas mas, pelo contrário, só sabia lamuriar-se entre uma ligação e outra. Violeta fora vítima da própria organização; passara a noite arrumando malas e documentos. Fora ao brasil para uma reunião de trabalhos e devia voltar logo, nem deu tempo de fazer valer alguma das minúsculas e cinzentas felicidaes urbanas de São Paulo (se é que há alguma felicidade para novatos internacionais). Em Montevidéu, lar doce lar, com histeria e ansiosidade esperavam em ancas gordas a mãe com tristes rugas, a irmã com tristes viuvagens e a louça com tristes rachaduras -- vítimas que são das discussões familiares. 

O voo de retorno à casa infernal e às belezas latinas decolava às sete com destino Buenos Aires e escala Montevidéu. Sentara ao meu lado no avião classe econômica e, dormindo no ponto em escala digna da bela Aurora de nossas infâncias, desceu conosco na Argentina, muito contrariada consigo mesma. A mãe já discutia ao telefone e eu poderia entender todas suas multipolaridades (nenhuma delas com presença de saudade. Esta palavra não existe em nenhuma língua mas com certeza deveria existir em qualquer ser humano que vê-se abraçando o ar), caso entendesse a língua espanhola em velocidade cinco.

Violeta desligou o telefone e em surto de bigorna soltou os lábios repetindo substantivos e mais verbos no mais envolvente espanhol. Dei  meus pitacos na história e ela, atrasadíssima para os afazeres de casa, num pré-choro preocupado, saltou os dentes brancos na pele índia e, sorrindo, puxou num arranco um espelho e um batom aveludado, numa cor meio roxa meio rosa, meio ela:

-- Un o dos días y... dicen que los argentinos son muy guapos. Ai ai, yo me voy a comprobarlo!

Um comentário:

  1. Você, não sei, é tão leve e tão desordenada... Não é um desses milhares de jovens escritores que escorrem em abundâncias compreensíveis por aí, QUERENDO fazer literatura. Você tem uma voz de quem tem que fazer. Voz de mensageira.

    Helena, a Grega Mineira!

    (Estas lendo Thoreau... Certamente um dos poucos homens livres que existiram. Eu li um ensaio, editado em pequeno volume, "Desobediência Civil", o qual dizem ser o pai do ideal anarquista moderno. Mas política não importa; Se gostar, realmente, desse livro, sugiro "Folhas de Relva" de Walt Whitman. É só.:)

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