domingo, 3 de outubro de 2010

Gravação


"Não é necessário sair de casa. 
Permaneça em sua mesa e ouça. 
Não apenas ouça, mas espere. 
Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. 
Então o mundo se apresentará desmascarado. 
Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés." (Franz Kafka)


"Nem me venha com essas tuas ladainhas. Bem sabes que te conheço de outros carnavais. (Carnavais antiquíssimos, por sinal.) Se te encaro agora nesta singela mesa de cozinha, assim com sombrancelha e olho formando ponto interrogador, é porque quero saber a pontuação de tua face, os acidentes desdentados dessas doze horas em que, como todo dia estiveste fora, mas das quais não todo dia voltas de olhar machucado e censurado, precisando costura ou conserto.

Tu nem aguentas tomar teu café, estou aqui esguelhamente atenta aos teus bebericos em falso. Pensas que me engana? Descobriste o amargo. É, eu bem notei. Amargo a alguns parece turvo, a alguns é alergia, a alguns é como batalha desigual. Onde já se viu honra em cavaleiro armado tentar duelo com gente nua de ataque e defesa? Café é bom para quem o compensa com prazeres de vida. Na boca destes, café é o próprio prazer, um tipo meio elixírico, meio lírico; café é pedacinho de vida, moído mas com essência incrustada.

Por que teus olhos estão presos nesta xícara de sombra imbebível? Por que não me miras? Por que finges que sou mais uma cadeira da tua cozinha maltrapilha? Mais um gostinho de chá de cadeira, é isso! Chá é como fumaça, a gente capta no ar, a gente bebe fragrância. Chá é incenso líoquido, lembra sabores e dissabores. Dissabores, hm... conta-me a razão de toda esta tua impessoalidade? Esta tua ausência de pessoa. Pela manhã sorrias, lembravas até os sóis de janeiro. Mas agora... agora lembra-me túmulo, uma tumba sem qualquer retumbância - agora arrepias-me. Ajusta teus binóculos reguláveis aqui para nossas redondezas, tu aparentas desfoque, bem como o ato de vestir a miopia que não te pertence. 

Até porque talvez ela não fosse assim a moça certa. Ela mesma, não disfarces! Conheço mais tuas mímicas cerebrais que ti - ainda mais quando perdido em lentes tu estás. Que te passou? Hoje de manhã disseste que a voz dela atendera ao telefone junto com ela toda. Bela voz, todo o país discador sabe. Mas ela esconde levianas desgraças em seu pretexto de secretária eletrônica. 'Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagem', a tal moça diz todo instante nos milhões de telefones brasileiros, ela ali robótica, repete e repete sem dó nem piedade aos tantos saudosos, desesperados e fofoqueiros por aí, só precisando de trocar palavras com quem não atende.  E aquela voz fria dessa moça que tu tanto amas, mas que nunca recebe tua fala ao telefone, nunca dá-te chance de ouvir viva voz. Já te alertei, e tu nem prestaras atenção: tanto ligaras para esta moça, em tentativa invólucra de ouvir os lábios dela (pois sempre ouvirias, ela em fala ou gravada), e não percebestes que o som só vem dos lábios quando estes são espontâneos. Lábios têm a espontaneidade em cada rachadura, em cada curva dimensionada projetada. Ouviste hoje à mulher ou à mecanização dela? 

Ao primeiro café de cada dia, empolgara o riso confabulando sobre essa senhorita, maravilhosa senhorita, que levara o telefone à orelha e substituíra a própria voz gravada. Conta-me os detalhes, completa-me este álbum de fofoquinhas! Teu almoço foi solitário? Teu olhar devorava só o comercial completo porque era este a única companhia? Não duvido que tenhas salpicado pimenta pelos feijões - esses seus vícios por substituições de prazeres. Esperta-te, e aprende a separar os tons; a humanidade foge quando a repetição se imortaliza: a frase assim, idêntica em voz e tempo, para tantos necessitados de real voz voraz. Não sofre nesses tantos! Beba um copo dágua, inventa pr'ele o sabor que te apraz - beba sim um copo d'alma. 

Mas... que é isso? E só agora eu te percebo em situação calamitosa! Pára com isso, não te revomites ao mundo, isso acaba-te todo! Socorro! É o horror, é o horror! É a dor de um eletrônico fervor! Ó, salva-te à medida que tento te ajudar! Por favor!"

Os olhos revirados, enfiados nos ouvidos, só tinham foco no cérebro, única paisagem definível. A boca, babando escarro em pingos no copo vazio produzia aguardente agudo, desses que cortam gargantas desavisadas. Os lábios, pobres lábios, trancaram-se em sangrenta intersecção de dentes costurando com restos de cílios idosos os pontos de acidentes. Os últimos regozijos de poço esguichavam do rosto daquele homem na forma de espinhas adultas compostas por estresse; o corpo, estirado à cadeira, intacto para reaproveitamentos necrófilos. Um bigode digno de Dalí estampava, em caneta de escritório, as outonais maçãs do rosto.

Dizem os vizinhos que depois ela enlouquecera; que vive de camas, psicólogos e manicômios até os dias de hoje. Mas reumanizara aquele a quem tanto falara. A quem tanto desentendera, desajudara, desesncantara, pobre senhora, gastava horas e horas em tentativas de auxílio àquele desvairado. Era preciso soltá-lo logo, alguém ali perto chamava! Era preciso desamarrar, descosturar, voltar os ohares aos seus devidos lugares! Era preciso desentranhar os sentidos, desestranhar o homem do mundo. Pois não se salva gente sem ajuda dessa gente. A dona senhora catou as mãos baratosas do amigo, tentou desanuviá-lo conduzindo seus dedos pelas encrencas de seu rosto. Não havia tempo; talvez fosse aquela a única chamada, a última das possibilidades, o último vício. "Desmecaniza-te, homem!", bradava ela entre soluços, louca e de subfaces explodindo em artifícios, os braços espalhando-se pela cozinha há horas já ensanguentada, "Não faze-te tal qual a mulher que desprezara-te! Ouve, criatura!"

Dentre restos e carnes, secreções e odores de lágrima, remorsos e hipnoses, as narinas continuavam intactas, na medida do possível. Um cheiro de forno, molho ao sugo, uns toques de parafina e castiçal, toalha rendada. Trejeitos de noite fresca. "Alguém me acuda, alguém me ajuda, não há tempos a perder!" O olfato despertou ao homem movimento próprio, é preciso, é preciso! Subitamente, é preciso! E o desenlaçar-se foi preciso. Tal qual despertar-se. Ainda havia tempo, afinal: O telefone continuava tocando. Bip.

Um comentário:

  1. Nossa, que habilidade pra descrever minimamente cada cena é essa? Adorei, parabéns. Voltarei mais vezes à essas bolinhas...

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