sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Memória Engavetada












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Naquele apartamento de ácaros e mofos, havia duas escrivaninhas. De madeira verdadeira e sotaque europeu, Anita embutia-se à parede, que não era tão nojenta assim porque a janela, pequenina porém válida, carregava para fora o ar pútrido do abandono daquele muquifo, e trazia o ar também pútrido porém diverso da grande metrópole de unhas roídas e pintadas. Anita, misteriosamente estática, guardava em gavetas os livros de cabeceira, as fotografias de sessenta e nove e do colegial, as anotações arregaladas, uma fita do Senhor do Bonfim e um antigo caderno de rabiscos, que é para quando Benevides, o anfitrião a quem hospeda, atende o telefone. Em outro cômodo, não por acaso o quarto de Benevides, mantinha-se em existência espectral a outra, a suja, a que esconde os lixos nas gavetas e debaixo do próprio estofo furado e embolorado. Janette, os pregos soltando, as pernas desiguais, macambeia para os lados, mas se mantém de pé, encarando uma parede que mais se fazia muro: sem frestas de luz nem ar, segura toda a água que não cabe e se lota, manchando tudo com cor de fuligem pobre. A máquina de escrever, Simone, era carregada de um lado ao outro do apartamento, e por isso seus dedos já não mais teclavam as palavras muito bem: os ás saíam borrados, os érres renegavam o negro e acinzentavam-se, os dáblios também embestavam a empacar, mas isso não importa, pois Benevides nunca escrevia muito sobre Wilsons, Walters ou escritos estrangeiros. Simone agora estava sob guarda de Janette, desleixada Janette.

O dia não prosseguia para Benevides, e ele bem sabia que olhar só para uma parede inchada incha também o ser humano. Seu encher-se escondeu-se nas gavetas -suas, de Janette e até de Anita-, fingindo-se nada. Hipócrita, Benevides tinha as pálpebras molengas como jeito de ser. Anitta exigia demais dele, fazendo-o ouvir sons de trabalho e lembrar de regar as plantas do parapeito porco. Benevides mirava o muro cinza que encostava em seu nariz, os olhos em tremeliques de covardia. É óbvio que a parede não ia se mover. Que nada ia acontecer naquela parede de fracasso. Que a parede era opaca demais para se ver qualquer coisa. Que só. Se é dia nada que Benevides aceita, um dia nada Benevides terá. Janette apoia Simone sobre si, e também apoia a tosca vida de Benevides, largado ermitão em vácuo universo. Anita sussurra uma canção, mas o homem não pode ouvir: em estado ameba, fixa o olhar no não-mundo que é a sua individualidade inexistente.

Com o cinza, combina-se até o marrom: marrom flop-flop de um casulo discreto que se avoa e, jurássico, não mostra a evolução. A mariposa vem da janela e canto de Anita, um quase acalanto, e pousa no canto esquerdo da parede em pose de posse. Os dois medíocres seres vivos se encaram com escárnio de angústia. Ora, houve uma intersecção no intransigente espaço vital. Arregale as pálpebras, Benevides! Pelo menos à Mariposa, encare! Janette balança, num rangido quase relincho. E, brutal, sela-se com Simone, as letras amarradas. Do convívio diário e meticulosamente observado com Benevides, Janette já o sabe: o homem tem lá sua covardia, mas quando se empolga com uma letra ou outra, e forma palavras e orações com sujeito terceira pessoa, então a vez dela se acaba. Então o mundo renasce e, junto com ele, uma paixão meio modesta meio arrebatadora que Anita desperta.

Anita viril, Anita saudável, Anita símbolo mas também com mimo de nascença, Anita tem farto parapeito, do tamanho da metrópole. Um m sai, emperrado, da boca de Simone, que se auxilia em Janette. “Mariposas são casulos portáteis.” E, pois bem, até que Benevides não era tão fossa assim, tão forca assim. Em movimento brusco, a mão grossa do homem arranca o papel do rolo de destino de letras, Simone até que não se importa, pois sabe Benevides em tempo integral e íntegro, mais que Anita ou Janette, estas alteregos próprios, desfalcada mulher mobília. A página rasgou-se e a fibra era visível a olhos nus – a mesma fibra que, aos dedos de Benevides, se espreitam ao ser-relíquia que parou na parede. Encostar, tocar, cutucar, diálogo; remexer-se, avoar, devanear, diálogo (avoar mais, amundar-se, mesmo que seja uma imundície, mergulhar no carbônico esconderijo que é o mundo). Benevides tenta guardá-la em gaveta, as fibras salientes desfocando os predicados, os objetos diretos, mas mantendo o sujeito em paz, na memória do resquício.


Mas, ah!, as letras se embaralham, de coisas bonitas já estão cheias as gavetas-tesourinho de Anita – se Janette não se prestasse a guardar o que não presta, mais universo seria Anita, apesar de não tão bela ilha deserta. Mas, ah!, Simone tem voz forte e pinos descorcertados: a incerteza identidade Benevides, semi-nômade, acabará por desmantelar a negra mulher de palavras sábias que não mais poderá dizer o que Benevides aglomera em botões de raciocínio. Mas, ah!, as orações se enlaçam homericamente nas gavetas de extremo ser, não se sabe mais se o tal sujeito da oração é o nada, o dia, a Mariposa ou restos vagos de palavras soltas que poderiam antes fazer-se sentidas, um sentido. Mas, ah!, fonemas tão semelhantes, janette anita, janette anita, janete anitta, escrivaninha de prazeres cômodos, junção que se arrasta e se finge um completo, ser humano, nome composto. Mas, ah!, Benevides: é mais belo ver-se no refletir de vidraçais e poças do mundo que na parede coisa, onde só se é a lembrança de gaveta do que antes fora – fôra lá fóra.


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