sexta-feira, 2 de julho de 2010

Singer.

A agulha sobe e desce, frenético modo tuf-tuf de ser. Seu rastro não está no metal rápido e fino, invisível. Seu rastro é linha branca entrelaçada que tenta seguir caminho reto e sem deslizes, crescendo e juntando as partes da flanela que não é nada mais além de um pedaço de flanela. Faz me bem costurar. Conduzir a linha pelo labirinto da Singer até chegar à fresta da agulha, ponta afinada. Acender a pequena luz amarela, único foco no breu da casa solitária às oito horas de uma quinta-feira à noite. Acelerar, pé na tábua,  pedal da Singer que me sabe e aceita o rumo que moldo, demodê modelo sem teoria, impulso da vontade não de roupa mas de linha demarcada, sinal cabal de vidas e poesias, sinal cabal de minha existência tosca e só, soando versos desafinados e de melodia errada na casa que me lembra nós. Pois eu e minha Singer, companheira, cantamos juntas -e canto torta somente eu, pois ela segue a condução que faço da flanela mas é irresoluta, rainha rubra com jeitos de quem manda no lar. 

Alfinetes, música, livros jogados para os lados. A história é ali, em cada tuf imediato nas cores da flanela que me acompanhará. Já foi-me dito que sou de família memorialista e, portanto, memorialista sou também eu. Guardo a imagem na câmera, guardo toda história em baús que sempre abro e abro de novo para fuçar e avivar a recordação. Guardo as aventuras em tênis rasgados de marrom vermelho. Saias tortas de acabamento pobre guardam minhas noites de solidão aconchegada e boa, em cada botão uma saga em grama, chá mate e toalha xadrez; em cada arremate um debate; em cada florzinha da estampa um amigo ou ente querido. 

Corto a linha e experimento: está mais ou menos, sempre um mais ou menos. Mas talvez mais mais e menos menos. O espelho espia, curioso, cada volta no corpo errado que me serve, esqueleto sem prefixo de inseto, pois platônico e dualítico, isso seria. paralítico. A barra acabou por ficar meio retorcida, mas isso é coisa que só os olhos repressores do reflexo sujo reparam e desprezam. As pregas formam novo caimento para a nudez. Sou nua nas noites de mim. Exoesqueletos são meu baú: guardo todos com cuidado, dobrando e alisando, ajeitando de vez em quando com a Singer minha amiga, um ponto ali e outro aqui, um ajuste na cintura  também não faz mal nenhum. Às vezes, retomo e saio mostrando, pois é esqueleto que ao lado de fora pertence, mundo e gente. é? Pois tão guardo com cuidado como visto e uso com cuidado: sou eu que os faço.

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