segunda-feira, 12 de outubro de 2015

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Esse blog mudou de endereço!
Agora é: https://temposdemorangos.wordpress.com

Beijocas

sábado, 8 de agosto de 2015

Registros fotográficos

Não é necessário relatar o caminho, muito menos o que aconteceu depois. Chovia e errávamos o caminho. Eu tinha certeza, mas oscilava pela também certeza das outras. Éramos três, mais meu irmão que, não tendo com quem passar a tarde, veio junto. Não falava muito, estava ligeiramente intimidado pelos assuntos que não lhe pertenciam, mas também não tinha feições de quem acha o passeio insuportável, de quem preferiria estar em casa.

Virei o rosto, andando na frente, e disse às meninas que lembrara o caminho. Que era fácil, em minutos estaríamos lá. Quando vi, já estávamos.

Não era nosso destino real, mas estávamos já dentro de um saguão, protegidas da chuva. Era como a entrada de um prédio, toda de madeira, com sofazinhos elegantes e algumas luminárias de metal. Sentamos para olhar a chuva pela janela. Não sabíamos como chegamos ali, mas isso não era o que nos intrigava. Na verdade, quase parecia normal, como se pessoas trocassem de espaços sem a necessidade de entrar ou sair. Como se houvesse uma dinâmica diferente na ordem das coisas, e tudo bem que fosse assim. A sala era escura, as luminárias não conseguiam dar conta de acender um dia nublado com lâmpadas amarelas e evidentemente gastas. Atrás de um dos sofás saía um corredor estreito, ainda mais escuro, de onde, assim imaginávamos, se abriam e fechavam os elevadores. Estávamos por demais absortas na janela e no mundo que caía lá fora para pensar em explorar o espaço. Não era momento para investigações, preferimos responder àquele realismo fantástico com contemplação. Contemplávamos a chuva, os prédios em volta do saguão, a ausência absoluta de pessoas e guarda-chuvas pelas ruas, os ângulos tortos das curvas nas ruas, como de um parque. Contemplávamos o vidro muito limpo da janela fechada e a armação de metal dourado que estruturava os vidros. Contemplávamos a falta de portões e porteiros e de quaisquer medidas de segurança criadas pelo nosso mundo de propriedades privadas e medos inventados.

Demoramos alguns bons segundos para notar que uma senhora havia descido de seu apartamento mas, já ali embaixo, decidira esperar as gotas de chuva se afinarem. Sentada, bem arrumada com um paletó vermelho, estava de costas para nós, encarando a porta principal, cuja existência até então não havíamos reparado. Seu modo de sentar me pareceu familiar, as costas um pouco curvas como uma vírgula tímida. Voltei os olhos para as meninas. Quando fui indicar com a discrição dos olhos, a presença da senhora de vermelho, vimos que mais uma senhora também havia chegado como nós: não entrou por lugar nenhum, não seguiu qualquer passagem, não veio da porta principal e nem do final do corredor, onde supomos existir elevadores. A senhora me olhou e vi: era a minha avó. Sentou-se ao lado da outra senhora no sofá, porque tinha uma dor nos joelhos que não a deixava ficar de pé por muito tempo, apesar de ser muito forte.

A senhora de vermelho virou-se para dar bom dia e as duas se encararam. Eram estranhamente semelhantes. Tinham o mesmo rosto, a feição obviamente migrante, do norte do país, e o mesmo corte de cabelo. Vovó usava há anos aquele cabelo curto, penteado para o lado, que nunca chegou a ficar branco, apenas acinzentado. Era muito cuidadosa, e só deixou de cuidar de si - em todos os sentidos - quando se perdeu, acometida por um câncer repentino. A senhora de vermelho tinha os cabelos mais escuros, bem pretos, como era minha avó nos anos noventa, quando eu era pequena e passava as tardes comendo o seu mingau de aveia. Com a tranquilidade que sempre teve, vovó se levantou e a senhora de vermelho se levantou junto. De pé, continuaram se olhando, enquanto demonstravam pequenos sorrisos. Assim, pudemos ver que a senhora de vermelho era uns bons quinze centímetros mais alta. Não se tratava, portanto, de um espelho, de uma duplicação, de um reencontro perdido no espaço-tempo. O dia era de intempéries e transparências. Eu e as meninas também nos víamos de outro jeito, e parecíamos mais semelhantes do que realmente somos, mas aquilo que acontecia era especial. Um ano depois de levarmos vovó para o hospital, reencontrá-la não era motivo de efusividade, de grito, de choro. Tudo parecia tão natural como há tempos o mundo não aparenta. As duas senhoras também viam tudo sem medo. Felizes, se abraçavam e pediam uma foto, para que o momento não se perdesse nas falhas memórias de velhice.

Meu irmão, que só olhava tudo, bateu a foto em uma câmera ruinzinha que vovó levava consigo (eu me lembro, foi presente de minha tia há uns já quatro anos). Estava confuso. Olhou para mim e perguntou, mas a vovó já não morreu? Ele também não tinha medo, sabia que vovó não traria pesadelos, mas não entendia nada daquilo que transcorria com tanta normalidade. Também me confundi. Esqueci qual era a memória correta, se o câncer havia levado vovó, inconsciente e sem dores, em agosto de 2013, se estaria ela ainda um pouco debilitada, mas viva na cama de hospital, ou se finalmente havia se recuperado. Vê-la saudável, rindo frente a mim, me embaralhou as lembranças e me fez esquecer de todas as vezes que chorei de saudade e que sonhei com a presença dela em parques de diversões, quartos de hospital, jantares simples em casa ou durante a campanha da nossa presidenta que ela sempre acreditou. Vovó estava ali. E a outra senhora, que desconhecemos nome origem e registro de identidade, também. Minha tia desceu pelas escadas. Eu não sabia o que ela fazia ali, mas ela está sempre em tantos lugares ao mesmo tempo que não estranhei. Saiu pelo corredor e nós ouvimos a porta batendo de leve. Respondeu ao meu irmão que vovó estava morta, de certa forma, mas que também estava viva. Minha tia sempre soube explicar as coisas da vida ao meu irmão, também por ser a única que ele realmente ouvia.

A chuva continuava absurda e o espaço-tempo não colaborava em nossas crenças tão ateias. Passamos a acreditar na eternidade.



Helena Zelic

8/8/15



domingo, 8 de fevereiro de 2015

Mercúrio retrógrado

em dezembro
engasguei e emudeci.
o ano virou e não fui
capaz de inventar versos novos.
e mesmo que fosse, o que são
versos vazios se não posso
criar fadas, baleias, mulheres
e das mulheres a luta;
se não sei mais falar
de pernas e cabelos,
de oceanos e terras
e da terra a reforma agrária.
perdi as sementes.

não abro portas,
derrubo as maçanetas
no limite do caminho.

perdi a travessia entre
o mundo e a linguagem
o mundo que faz a linguagem
então emudeci.
eu moro na cidade grande.
aqui não se fala.
aqui todo mundo grita.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Noite de lua cheia

Queiram ou não queiram
queimadas nas fogueiras
atreladas nas fugas dos vagões
pisoteadas, chacoalhadas, demolidas
tal qual pedaços dispersos de árvores
frutíferas
histórias aconteceram
aconteceram corpos e desejos
pontas de fumo
bocas desbeijadas
gritos e mãos e tropeços e bandeiras
e a esperança a alçar voo.
Mas também guilhotinas e facões
espingardas, pênis, força bruta
gritos de pavor;
mas também cantiga, abraço e gozo
mas também o corpo unido ao outro corpo
que é torto
que é muitos
a projeção dos corpos no mundo
e vozes e ardência e calor
e o mundo cuja história
é de terras e mulheres
o mundo que gira ao redor da lua.
Hoje é noite de lua cheia
e clareia a estupidez das falsas alegorias.
Hoje sangra.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Uma mulher parada no meio do mundo

*pensando em Mercedes Sosa


Uma mulher
parada no meio do mundo
é a encruzilhada.

Uma mulher
parada no meio do mundo
é o monumento,
é o sentido e a flecha,
o arco e o índio
é o rio - o que segue e o que fica.

A mulher que para
tem cara de América
os olhos pequenos que correm
o mundo em mil milhas.
É a mulher o pé na raiz
o milho maíz
o matiz das ervas
é todas aquelas
é a mãe e a filha
a avó que sussurra.

Mas se essa mulher abre a boca
e canta suas cordas vocais
é como se o mundo fosse ela.
O resto, torto, é desnorteio
que nem vale a pena cantar.

Uma mulher
parada no meio do mundo
é o mundo em movimento.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Origem

meu sangue
é o sangue do norte
Pará, Piauí
sangue da terra quente
terra da mulher forte.
assim aprendi.
quem quiser que me aguente.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Depois do céu

a maior lua do ano
sumiu
em seu lugar apareceu
um buraco branco e redondo
cortando o céu à tesoura
a mostrar que o infinito
não é tão infinito assim
no pretume da noite
sem estrelas
povoada por arranha-céus.

a maior lua do ano
brilha tanto
tão gigante
que parece o invisível
fenda nova no horizonte
buraco das fechaduras.

este céu
pode ser
só mais uma das portas.
e detrás da porta
há outra porta
maior que a maior lua do ano.

11.8.14


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Na busca das coisas

Está nos corpos
guardados nas fotos.
está nas manchas nos guardanapos,
está no ar, no lenço,
no meu pensamento, pois está,
bem como no seu
modo de pensar.

Procuro, procura,
mas está por ali e aqui
está nos invernos e nos lençóis
está nos mares e sob os pés
está aos seus pés!
E bem debaixo da ponta do nariz
esquece de procurar
e limita as buscas
pelo que é provável.

Façamos o caminho contrário.

Está em seus ossos, em seu quarto,
seu modo de escrever, suas calças
está preso na barra mal feita
que escorrega pelo chão imundo.
Está no chão, está na sujeira, está na imundície do...
mundo.
Está na materialidade,
por incrível que pareça.
Basta procurar,
logo irá ao encontro.

Quando acontecer, vai tomar um susto.

domingo, 22 de junho de 2014

Uma gata grávida é uma ameaça ao mundo dos homens

E no entanto venceremos.
É o que me cabe dizer.
A resistência será brava
como uma gata grávida
prestes a parir.
Partir os escombros,
rotas abertas
espadas em monstros.

A gata ruge enquanto saltam suas crias,
invenções da biologia.
A gata no parto
se torna parteira
e ao mesmo tempo pantera.
Ninguém a segura.
Mieeeeeeeeeeeeaou.

E no entanto venceremos.
E nesta vitória
comeremos nossa própria placenta.

Feito bicho.

sábado, 24 de maio de 2014

Constelação

Pouso as mãos sobre meus seios
no vão central do peito,
os dedos acolhidos.
Os seios quentes, quentes
mais ensolarados
que os dias lá fora.

Gosto de tocar-me na pele
percorrer-me.
Aprendo agora que são belos,
meus caminhos.
Sóis não passam de estrelas.
Minhas mãos abraçam estrelas.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

O fim do oceano

Há corpos boiando
nas profundezas.
Às vezes ainda se vê
restos de luzes piscando
nos cômodos dos navios
oblíquos
ou talvez seja apenas
mentira dos peixes,
loucuras.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Diagnóstico

De amor não morreremos.
De fome, de droga, de tiro
de dores, cansaço, ciúmes
acidentes e desvios biológicos,
disso tudo morreremos.
De amor não.
O amor não serve para isso
não cria vítimas por aí.

Mas confundem tudo
tomam o amor por qualquer coisa
um sopro de domingo
pronto, já insistem ser amor.
Até um soco no rosto inventaram
chamar de amor.

Mas soco dói,
quebra,
sangra,
entorta,
emudece.
Amor não.
Amor é mais bonito.

Chega das tolices
desse mundo viciado
que gira, gira, gira
faz rotas, translada
e nunca dá passos novos.
O amor nunca matou ninguém.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Para dizer alguma coisa

Antes de tudo o que houve
acreditei piamente no trágico e no fim
das coisas.
O finito, o limite
os pulmões para o ar,
soleiras de porta.
Como se não pudesse existir
algo que seja tudo
porque sempre falta alguma coisa --
e nem é "sempre"
porque se houvesse sempre
teríamos tudo.

Quem garante que não haja mastodontes voando no céu?
Bem na hora em que se pisca
ou talvez escondidos pelas nuvens
pelos prédios atrás das cortinas
rindo.
Existem linhas retas
ou apenas segmentos?
Os pontos são quantos
dentro da palma da minha mão?
Creio que todos,
reticentemente.

As estátuas estão se mexendo,
basta olhar
mas olhar com muita atenção.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Atrasos

Não sei o que se passa
em meu ventre
nunca foi de clamar por mim
mas agora está aqui
mudo e calado
numa desonestidade suprema

essa de não me deixar
dormir
pensando quais conteúdos
e infortúnios
meu ventre prepara
ao meu futuro.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Solitária

Tive medo de baratas, Ricardo
em tempos distantes que virão.
Vi e previ, precavida
o reflexo dos vidros
e das rugas monstruosas em meu rosto
até encontrar, no estático
o relance do vento central
aquilo que move os períodos
as determinações lexicais
a luz e sombra no contraste
daquilo que vejo
e que move o foco dos olhos.

As pupilas balançam
impressionáveis
como pedaços pesados de granizo
em chuvas mal programadas.
E ainda assim
lentas
não alcançam o corpo que sentiram passar
não conseguem encostar
em coisas outras que não sejam
o reflexo apenas mal dormido
de um cômodo meio sujo,
com barulho próprios, invisíveis,
de qualquer cômodo.

Ricardo, Ricardo
já deve ter passado por passados parecidos
quando partiu para o Rio de Janeiro
quando Rita arranjou um emprego
(pobre Rita, presa em seus punhos)
e quando morreu sua cachorra branca
vítima de doenças neurais.

O medo dos fantasmas
é o pior dos medos
dentre todos o mais exclamado
ou escondido
nos escombros do que há de vivo
arfando pelos narizes.
nunca se sabe o que pode aparecer.